terça-feira, 11 de setembro de 2018

Série Histórica - Guerra de Canudos Parte 5: A Comunidade Mística - Terra dos Justos

O Arraial de Belo Monte transformou-se em uma espécie de "terra prometida", à margem dos males da terra, para os adeptos do líder religioso. A proposta reformista de Antônio Conselheiro ultrapassou as fronteiras das classes subalternas, como é comum nessas situações. Há registros de pequenos, médios e grandes fazendeiros vendendo suas propriedades e se transferindo para o interior do arraial.

A fama de Antônio Conselheiro, crescente no decurso dos vinte anos de peregrinação pelos povoados, vilarejos e cidades, atraiu pessoas de inúmeras comunidades rurais baianas e de outros estados nordestinos. Localidades como Queimadas, Itapicuru de Cima foram abandonadas por centenas de moradores que rumaram para a cidade santa.

Para lá foram populares de de Inhambupe, Tucano, Cumbe, Bom Conselho, Natuba, Maçaracá, Monte Santo, Uauá, Entre Rios, Mundo Novo, Jacobina, Itabaiana, e outros núcleos populacionais distantes, dos estados do Sergipe e do Ceará.

Pelo alto das colinas, estradas e caminhos, deslocavam-se grupos de crentes em busca da famosa cidade. Pessoas traziam em macas, parentes doentes em busca de milagres. Vinham pequenos criadores, vaqueiros, mães de família e seus filhos, viúvas e pessoas sem eira nem beira. Pelas estradas de Calumbi, Maçaracá, Jeremoabo, e Uauá, transportavam-se mantimentos enviados de cidades como Vila Nova da Rainha e Alagoinhas, pelos admiradores do pregador.

O enorme contingente populacional foi responsável direto pela ampliação na dimensão territorial do sítio original da fazenda de Canudos. A área ocupada pelos conselheiristas em Belo Monte passou a ser aproximadamente 53 hectares. Em 1895, a população oscilava entre 5 e 8 mil habitantes. Em 1897, uma comissão de engenheiros militares avaliou a existência de mil casas, o que corresponderia a uma população de aproximadamente 26 mil habitantes.

Em 1897, o capitão Manuel Benício, correspondente do Jornal do Comércio, comentava a esse respeito:

"As casinhas vermelhas cobertas de barro
da mesma cor salpicavam a esplanada
desordenadamente em número de mil,
pouco mais ou menos."

Euclides da Cunha estimava a existência de 2 mil casas. Para Marco Antônio Villa, o número apresentado pelo exército é exagerado. Com a informação, a oficialidade buscava justificar as derrotas seguidas das forças armadas durante a guerra contra os caboclos.

Os moradores do arraial pertenciam a grupos étnicos e a camadas sociais bastante heterogêneos. os registros e os testemunhos contemporâneos indicam a existência de indivíduos brancos e negros, mas sobretudo mestiços. Ali se encontravam em número maior, pardos, cafuzos e mamelucos. esses traços, aliás, correspondiam à composição genérica do processo de formação étnica dos sertões nordestinos. O caboclo constituía o resultado do complexo amálgama iniciado com a colonização brasileira. Constituía a prefiguração do brasileiro tipo, negada, pois temida e abominada, por Euclides da Cunha, em Os Sertões: Campanha de Canudos.

É igualmente atestada a presença indígena em Belo Monte. Muitos dos populares que foram para o arraial tinham nas veias o sangue nativo da região. Ela pode ser confirmada na predominância de vocábulos de origem indígena em denominações geográficas como Pambu, Patamoté, Uauá, Bendengó, Cumbe, Cocorobó, Xiquexique, Jequié, Catolé e outras.

Há fortes indícios da existência de índios não-miscigenados no arraial. Algumas tradições dos caimbés de Maçaracá e dos quiriris de Mirandela subsistiram na comunidade, tendo lá inclusive morrido seus dois últimos pajés. Entre os vestígios encontrados no sítio arqueológico há instrumentos e objetos tipicamente indígenas.

Pesquisas recentes demonstram cada vez mais a participação de negros e ex-escravos na comunidade, entre os conselheiristas e entre os chefes da resistência. Belo Monte recebeu todos os refugiados e sofridos, sem distinção.

Antes mesmo de se estabelecer em Belo Monte, Antônio Conselheiro era seguido ( ou ouvido ) por cativos e negros forros.

Nas proximidades de Canudos, existiram redutos de escravos foragidos. No Século XIX, havia quilombos nas cercanias de Jeremoabo e Monte Santo, localidades vizinhas do arraial. Ex-escravos, negros livres e pardos, abandonados à própria sorte após a abolição, encontraram um refúgio em Belo Monte.

Grupos de ex-escravos instalaram-se no arraial, ocupando uma área conhecida como Rua dos Negros. Homens negros desempenharam papéis de comando ( entre os quais o célebre Pajeú ) na resistência militar conselheirista.

Entretanto, índios e negros puros constituíam a minoria da população. A historiadora Yara Bandeira de Ataíde afirma que apenas 4,95% dos habitantes eram negros puros.

A maioria esmagadora dos conselheiristas podiam ser chamados de "morenos acaboclados", mulatos, "escuros" e caboclos, revelando os caracteres físicos típicos do sertão nordestino: cabelo corredio duro ou levemente ondulado, estatura mediana ou baixa.

Quanto à origem social dos conselheiristas, parece não haver dúvida de que em sua maioria, provinham dos estratos mais humildes da sociedade da época. Havia comerciantes e pessoas de posses em Belo Monte. Porém, constituíam parcela inexpressiva. Homens como Antônio da Mota, Joaquim Macambira e Antônio Vila Nova tornaram-se chefes militares ou administrativos e ativos negociantes.

Havia professores, enfermeiros e um médico no arraial. Mas a maior parte dos habitantes desempenhava atividades vinculadas aos ofícios artesanais: mestres-de-obras, pedreiros, pequenas vendedoras, cozinheiras, etc. A comunidade dava abrigo aos deserdados, recebendo um grande número de camponeses analfabetos; pastores e vaqueiros das caatingas; e fugitivos e valentões locais, hábeis no manejos das armas, que viriam a ser designados, de forma pejorativa de jagunços.

A distribuição e a organização do povoado era igual a das outras comunidades sertanejas vizinhas. Porém, no arraial, o forte crescimento populacional determinou uma apropriação desorganizada do espaço habitado. Em geral, as casas construídas possuíam 40 metros quadrados de área. Eram feitas de barro e de madeira, com dois ou três compartimentos e cobertas com folhas de plantas locais. Possuíam uma porta e pequenas janelas.
Este artigo tem como base bibliográfica a obra Belo Monte uma História da Guerra de Canudos, de José Rivair Macedo e Mário Maestri, da Editora Moderna que faz parte da Coleção Polêmica.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Série Histórica - Guerra de Canudos Parte 4: A Comunidade Mística - A Situação Geral

Em 1983, quando Antônio Conselheiro conduziu seus discípulos para Canudos, o povoado era pequeno, perdendo-se no meio dos vilarejos levantados em torno das inúmeras fazendas baianas. Porém, em um período de quatro anos, tornava-se um dos maiores núcleos populacionais do estado.

Com a chegada dos conselheiristas, o arraial foi renomeado, passando a ser chamado de Belo Monte. O novo nome deu um novo sentido a comunidade. O nome de Belo Monte simbolizava a revalorização geográfica do local. Enquanto Canudos lembrava decadência e abandono, Belo Monte apontava o lugar de encontro dos eleitos com uma vida melhor.

Contrastando com a prosperidade aparente das cidades beneficiadas pelas plantações de cana-de-açúcar e cacau, situadas mais para o litoral, a paisagem do interior baiano denotava a pobreza e o abandono, denunciando as profundas desigualdades entre as áreas costeiras e o sertão.

As condições de vida miseráveis nos pequenos povoados evidenciavam a estagnação econômica e as dificuldades enormes vividas pelos sertanejos.

Nas comunidades compostas algumas por dezenas ou poucas centenas de casas em torno de uma rua principal, alguns pontos comerciais e uma capela ou igreja, agrupavam-se moradores pobres envolvidos com o pequeno comércio, com o artesanato rústico, com o trabalho da terra nas fazendas circunvizinhas.

Canudos não era exceção. Surgido no Século XVII, o vilarejo desenvolvera-se em torno de uma fazenda típica. O nome do povoado saíra de uma das plantas da região: os canudos-de-pito. Para alguns estudiosos, em 1893, Canudos contava com pouco mais de 50 casebres erigidos nas imediações de uma velha igreja, de uma casa-grande e de alguns pontos comerciais. Era habitada por uns 250 moradores, envolvidos com as habituais atividades de subsistência das comunidades rurais.

Sua localização geográfica era típica do sertão. Situado a aproximadamente 270 quilômetros longe da capital, distanciado das planícies costeiras, o povoado era cercado por grandes irregularidades do relevo, destacando-se grande serras e montanhas, como a Serra Grande, a de Anastásio, a de Cambaio, a de Coxomongó, a de Calumbi, e a de Aracati. Na proximidade do arraial estava o Morro da Favela.

Favela é o nome de um vegetal existente no sertão baiano.

No sopé do morro, os conselheiristas montaram suas residências. Foram essas cabanas de barro e taipa que deram nome as casas miseráveis dos nordestinos que a partir do início do Século XX, migraram para o Rio de Janeiro.

O solo da região era seco e pedregoso. A vegetação era de árvores, arbustos e leguminosas típicos do semi-árido. Nos campos gerais, nos tabuleiros, nas caatingas, nas matas e nos serrados agrestes germinavam macegas, bromélias, macambiras, umbuzeiros, catingueiras, alecrins-dos-tabuleiros, caroás, e gravatás, adaptados à falta de água. era uma paisagem triste, rude, monótona, características de lugares de temperaturas elevadas e clima seco.

Nas proximidades de Canudos, corriam os rios Itapicuru e o Vaza-Barris, cujo nível das águas mantinha-se apenas no período das chuvas. Durante o resto do ano, podia ser cruzado a pé. Apenas alguns depósitos de água resistiam. A cidade sertaneja desenvolveu-se justamente na parte mais larga do rio, beneficiando-se das águas de suas cheias.

No sertão a época das chuvas, geralmente é, entre dezembro e maio. Os sertanejos chamam "trovoadas" os temporais rápidos e violentos, essenciais para a revitalização dos leitos de rios e riachos, e o acúmulo de água em tanques e cacimbas. Durante o período de estiagem, quente e seco, eles fornecem o único estoque de água.

Havia também, como há hoje, o flagelo das secas. Houve um ciclos de secas no sertão nordestino que assolou periodicamente as populações rurais, desde meados do Século XVIII. Nesses momentos, além do martírio provocado pela carestia e pela fome, havia o desenraizamento, as migrações. A seca de 1877-1879, uma das piores do Século XIX, expulsou multidões de sertanejos em direção às cidades do litoral e às regiões Norte e Sudeste.

Somente no Ceará, durante a seca de 1877, teriam morrido em torno de 64 mil pessoas.

Os corpos malnutridos, as péssimas condições higiênicas, favoreciam as doenças infecto-contagiosas. Era enorme o número de vítimas de epidemias de varíola, cólera e catapora. Entre 1855 e 1857, ao menos 29 mil pessoas morreram vítimas do cólera na Bahia. Na década de 1880, a vacinação contra a catapora foi suspensa, pela falta de vacinas.

Comissões de assistência distribuíram roupas, suprimentos e sementes para flagelados. As embarcações ferroviárias ou fluviais transportavam carregamentos de emergência com alimentos ( carne-seca, mandioca, milho, feijão ), sempre insuficientes para o exército de desvalidos que se aglomerava nas ruas e nas praças das cidades.

A fome, a desnutrição e a exposição às doenças não se restringiam aos períodos de crise aguda ou de graves oscilações do clima. As condições de vida dos sertanejos pobres eram bastante precárias, tornando-os vítimas de diferentes doenças.

Em meados do Século XIX, menos de 5% da população rural possuía terras. Paralelamente ao processo de crise do sistema escravista, diversas leis procuraram regular as formas de acesso à propriedade, proibindo a distribuição gratuita de terras às comunidades necessitadas, restringindo as possibilidades de aquisição pelas camadas pobres e facilitando a concentração fundiária das oligarquias locais.

Em 1895, o governo baiano promulgou a Lei nº 86, que estabelecia como terras devolutas as terras que não tinham uso público, as de domínio particular sem título legítimo, as posses que não se fundassem em documentos legítimos, e os terrenos de aldeias indígenas extintas por lei pelo abandono dos habitantes.

Em 1897, a Lei nº 198, declarava terras devolutas as que não tivessem título,legal e as que não fossem legalizadas em tempo hábil.

Ambas as leis, tornaram frágeis a situação dos ocupantes pobres de terras familiares não-comprovadas por documentos, que ficavam sujeitos a perdê-las para grandes fazendeiros.
Ao mesmo tempo, forçavam os posseiros a permanecer atrelados e dependentes aos personagens politicamente influentes.
Este artigo tem como base bibliográfica a obra Belo Monte uma História da Guerra de Canudos, de José Rivair Macedo e Mário Maestri, da Editora Moderna que faz parte da Coleção Polêmica.