domingo, 28 de junho de 2020

Plágios e Delações

PLÁGIOS E DELAÇÕES

I

Tinha dezenove anos. Era uma fase boa mas também braba. A faculdade era uma maravilha mas não dava pra ir a pé, então a luta era pelo dinheiro do ônibus. Se desse, lanchava.

Fiz uma prova de Álgebra Linear, tirei 4,5. Péssimo. Precisava de 9,5 para passar. Um amigo, com a maior boa vontade, que tinha tirado 9 ou 10, me deu aulas particulares grátis. Estudei pacas Chegou a segunda prova, a correção era na hora. DEZ. Quase caí para trás. Maior orgulho.

Saindo da sala, está o amigo com a cara branca de leite, nervoso, suando. Prova em branco. O cara que me deu aulas e me fez passar estava no buraco. Sem que ele tivesse me pedido, fui uma besta e larguei a minha prova na mesa dele. Claro que eu estava errado, muito errado, mas achei injusto demais que a pessoa que me ajudou estivesse no chão ali. Foi uma besteira de um segundo.

Nervoso, ele tinha a prova nas mãos e se enrolou. Não era de cola. A professora veio, desconfiou, mexeu no material e deu o flagrante na prova novinha, dez da silva. Uma gata da sala me ligou à tarde, contou o desastre e aí me senti culpado duas vezes.

Passou uma semana de agonia. Cheguei a procurar a professora na secretaria, não encontrei, sabia que teria que acertar aquilo. Na semana seguinte era a prova final e, quando estou sentado no hall da faculdade, ela veio e educadamente pediu para falar comigo. Fomos até a sala onde seria aplicada a prova. E quando lá chegamos, eu fiz o que sempre esperam de mim, errando ou não:

- Professora, a culpa daquilo foi 100% minha. O amigo não me pediu nada, estou errado e, se a senhora quiser, tem todo o direito de me reprovar inclusive. Eu só consegui passar porque ele me deu aulas, ele me tirou xerox de graça, eu estou sem dinheiro, o meu dez só aconteceu por causa dele. Não devia ter feito aquilo e não tem justificativa, mas explicação. Mil desculpas, estou errado, você decide.

(Silêncio típico de uma mulher madura, refletindo diante daquilo)

- Paulo, eu até entendo. O que eu não esperava era que fosse logo você a fazer isso que tanta gente gosta aqui. Eu vejo quando você está no corredor e o pessoal gosta de você.

Sem brigas, sem notas, sem zero, a professora Regina me deu uma das maiores lições de toda a minha vida. Seja quem você for, você tem uma reputação a zelar. E não dá pra ser mais ou menos bom ou fazer mais ou menos o bem, ou ainda aplicar à ética um formato elástico por casuísmo. De lá para cá, eu errei muitas outras vezes, mas o mesmo cara que fez aquela bobagem também foi o que por 25 anos calculou o principal índice de custas cartorárias do Rio de Janeiro, aplicado a todos os imóveis comercializados, sem deixar uma vírgula para que peritos viessem pra cima, como faz um papa defunto na hora capital.

Agradeci Regina de coração. Não a vejo há 25 anos. Espero que esteja bem. Ela foi uma das pessoas que salvou a minha vida, mas nem sabe. Meu amigo está bem, casado, feliz, é uma boa pessoa, das mais legais e divertidas que conheci na UERJ.

II

A prova era difícil paca, a professora gostava de mim de graça, tinha um pessoal meio bobo que disputava a liderança intelectual da sala com as maiores notas, que na prática não significavam nada.

Veio a prova, com consulta (nunca é fácil), um zum-zum-zum na sala, eu brigando com a calculadora. Pesquisar na matéria é diferente de copiar provas antigas com nota 10. Fiz de cara limpa. Teve gente que nem usou a calculadora pra estimar amostra. Pqp...

No dia do resultado, correção na mesa da professora, ela me chama. Sempre por Paulo Roberto, tal como minha mãe fazia e a Marina faz às vezes:

- Paulo Roberto, sei do seu potencial desde outros períodos, mas você precisa se aplicar mais, a nota é apenas 6,5.

(Duro que nem um coco, meu pai no auge da depressão e alcoolismo, só ia em casa pra dormir e tomar banho, estágio no aperto, aula de manhã e de noite, a Era Collor...)

(Ouço risinhos de dois ou três, que tinham tirado 10 graças ao artifício da prova copiada. O sangue subiu)

- Cristina, minha nota não foi baixa. É que sua prova é difícil e eu a fiz com consulta à matéria, não copiando uma prova antiga idêntica. Sinceramente, se você prestasse mais atenção às provas, já teria percebido que tem gente fazendo sem usar a calculadora, o que é tecnicamente impossível. Claro, tem gente só copiando. Não é problema de aplicação, é de caráter. Duvido que alguém que riu de mim há pouco me desminta.

(Silêncio rubro-negro na hora do gol de barriga, que nem tinha acontecido na época)

Acabei passando, segui, me formei com muita luta. Nunca fui santo mas tenho certeza de que acerto muito mais do que erro, e não me contento em ser bom mas sim em fazer o bem. Demorei mais tempo do que devia para me formar porque não optei por caminhos mais fáceis.

A professora deve ter me escutado. No período seguinte a farra acabou, não teve mais consulta e a matéria passou a ser carne de pescoço. Os dois ou três do risinho passaram a não falar comigo, o que não fez falta nenhuma.

III

Meu humilde diploma foi conquistado com muito suor. Vai fazer 26 anos daqui a menos de dois meses. Passei para dois mestrados, mas desisti por falta de bolsa e de dinheiro. Poderia ter sido um bom professor, é o que dizem. Depois passei por três faculdades, larguei todas pela metade, virei escritor, montei blogs, virei repórter, remontei meu sebo e estou lutando para sobreviver. Vamos ver se dá.

IV 

Perto de ter um ministro da Educação que mente sobre um doutorado que não tem, além de estar em xeque por plágio na tese de mestrado, cá entre nós, eu estou bem na fita. O problema é que, além da minha total oposição a esse desgoverno fascista, escrevi 28 livros como autor e coautor, um currículo que é indesejável para esses transtornados de terra plana, cloroquina e rachadinha. É isso.

@pauloandel ( clique )

Paulo-Roberto Andel é escritor com várias obras publicadas, bacharel em Estatística, radialista e blogueiro.