segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Série Histórica - Guerra de Canudos Parte 3: O Conselheiro e a República

Dois acontecimentos, mudaram o rumo da história do Brasil no fim do século XIX. Os dois fatos pesaram no destino de Antônio Conselheiro e seus adeptos.

O primeiro, foi o fim da escravidão, com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. O segundo foi a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.

A abolição foi a conclusão do sistema escravista, que teve inicio na colonização portuguesa em 1532. Com o fim do tráfico internacional de escravos ( proibido em 1850 ), disparou o preço de trabalhadores escravizados. A população servil não se reproduzia, muito menos se expandia, por causa das difíceis condições de vida e de trabalho. Desde os meados do século XIX, escravos passaram a ser vendidos do Sul, Oeste e Nordeste, para as fazendas cafeicultoras do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.

Imigrantes europeus foram trazidos a partir de 1880, para trabalhar como colonos na produção cafeicultora. No Nordeste, a mão escrava foi mantida até os últimos momentos da monarquia, apesar de governantes e proprietários terem tentado alternativas para substituir os escravos.

Sobretudo na Bahia, havia preocupação com a escassez de mão-de-obra. Além da crise gerada pela abolição, as secas, a fome e o monopólio de terras, causavam um decréscimo de população potencialmente trabalhadora. A posse latifundiária da terra era um freio ao desenvolvimento de uma economia camponesa autônoma. Isso causava uma intensa migração de sertanejos para Salvador ou para o eixo Rio-São Paulo.

O governo baiano incentivava sem obter sucesso a contratação de chineses, japoneses e europeus. Algumas colônias de alemães, suíços e irlandeses foram criadas no início do século, mas não prosperaram. Em 1859, a experiência com imigrantes italianos fracassou igualmente. Vantagens oferecidas a imigrantes dispostos a fundar núcleos coloniais não saiam do papel.

As tentativas da elite rural baiana em introduzir mão-de-obra estrangeira, demonstra o preconceito que existia em relação ao homem sertanejo, uma vez que apesar das dificuldades sociais e de vida, ainda representava um grande contingente populacional.

A população sertaneja pode ter visto a libertação da população escravizada como uma vontade da família imperial, o que fortaleceu a visão popular do imperador como "pai dos desvalidos". A população sertaneja não conseguia perceber a ligação entre a ordem escravista e a ordem monárquica.

Antônio Conselheiro era partidário das ideias abolicionistas. Um escravo fugitivo foi encontrado entre seus seguidores quando de sua prisão em 1876. Em suas Prédicas, redigidas mais tarde, ele apresentaria a abolição como um ato da vontade divina, realizada por um ato imperial.

"Quantos morreram debaixo do açoite por faltas que cometiam!
Alguns quase nus, oprimidos de fome e de pesado trabalho!
E que direis daqueles que não suportavam com paciência tanta crueldade 
e no furor ou no excesso de sua infeliz estrela se matavam!
Chegou enfim o dia em que tinha Deus de pôr termo a tanta crueldade,
movido da compaixão a favor de Seu povo
e ordena a libertação de tão penosa escravidão."

Declarações de Conselheiro, demonstravam o caráter de sua pregação e de suas convicções políticas. elas se encontravam em concordância com amplas correntes do pensamento religioso e social de sua época.

"{..} Dona Isabel libertou a escravidão,
que não fez mais do que cumprir a ordem do céu;
porque era chegado o tempo marcado por Deus
para libertar esse povo de semelhante estado;
o mais degradante a que podia ser reduzido
o ente humano {..}."

A promulgação da extinção do trabalho escravo desestabilizou o regime monárquico. Abandonado pelos últimos partidários, ligados aos fazendeiros escravocratas, o sistema chegou ao seu fim.

A substituição do falido sistema monárquico pelo republicano nasceu de um compromisso entre líderes civis e militares. Nomes como Aristides Lobo, Aníbal Falcão, Lopes Trovão, Quintino Bocaiúva, José do Patrocínio, Campos Salles e outros saudaram o início de uma nova era para o Brasil. Os então considerados atrasados e estagnados, monarquistas convictos logo passaram a integrar ministérios e as bancadas legislativas republicanas após o golpe militar de Deodoro da Fonseca.

O advento da república não contou com apoio popular, nem teve participação das classes subalternas. Ao contrário, as elites militares e civis, atuaram fortemente para tomar o controle do poder.

Republicanos históricos ficaram atordoados com a indiferença das pessoas na instalação do novo regime. No Diário Popular de 18 de novembro de 1889, Aristides Lobo, escrevia que o povo não foi o protagonista dos acontecimentos, mas sim, meros espectadores que julgavam assistir a uma parada militar.

Entre os civis, os defensores do novo regime eram os ligados a cafeicultura paulista. Parte era integrada por advogados, médicos, engenheiros, que surgiram do iniciado processo de industrialização. Junto a eles, intelectuais, defendiam os novos princípios, agarrando-se ao liberalismo, ao positivismo, ou aos princípios herdados da Revolução Francesa.

A corrente militar era composta por altos e médios oficiais, especialmente do exército. Simpatizantes do positivismo, consideravam-se os precursores da modernidade, e poderiam intervir na "coisa pública" sempre que fosse conveniente. O fato de os dois primeiros presidentes terem sido militares, confirmou a influência dos militares na política. Neste ano eram intensos os movimentos em quartéis, regimentos, fortalezas, na escola militar no Rio de Janeiro. Durante o governo de Floriano Peixoto ( 1891 - 1894 ), a influência militar foi dominante.

A república não ampliou a participação popular na política. Assim como fora no império, a participação popular era praticamente nula. Partidos e agremiações, eram formados por uma minoria. O direito ao voto era excluído aos pobres, aos mendigos, as mulheres, aos menores, os militares que não fossem oficiais e aos membros de ordens religiosas. Exigia-se para o exercício da cidadania, qualidades que somente as elites possuíam, enquanto se impedia que a população comum conseguisse cumprir essas exigências. A educação básica era negada a maioria esmagadora. A república nascia antidemocrática.

A participação da elite na luta pelo poder foi intensa. Deodoro da Fonseca enfrentou oposição de ministros e parlamentares, chegando a fechar o congresso em 3 de novembro de 1891. Ele mesmo renunciaria em 23 de novembro, entregando o cargo a Floriano Peixoto.

O "Marechal de Ferro", governou em meio a tentativas de golpe, rebeliões militares, motins de rua, e conflitos civis no sul do país. Usava a espada como objeto de controle sobre adversários radicais. Mesmo desejando perpetuar-se no poder, suas ações permitiram que em novembro de 1894, assumisse o primeiro presidente civil, Prudente de Morais, representando os interesses dos cafeicultores paulistas.

A fragilidade política era agravada pelos problemas econômicos da época, sendo que a produção cafeeira era a única que não foi atingida profundamente. No início da década de 1890, o café era o responsável por 61,5% das exportações, o açúcar por 9,9%, a borracha 8%, o algodão 4,2% e couros e peles 3,2%. O desequilíbrio entre o sudeste cafeeiro e o resto do país, agravava os problemas inter-regionais.

O centro-sul, era igualmente privilegiado pelos investimentos do governo. A construção de estradas de ferro, aproveitamento de vias pluviais, instalação de rede de telégrafos e outras medidas, ampliaram as dívidas com bancos e nações estrangeiras.

Em 1883, o valor dos empréstimos contraídos no exterior era de 4.599.600 libras, e seis anos depois, chegou a 19.837.000 libras. Em 1898, representantes brasileiros tivera de negociar na Inglaterra um empréstimo de salvação, concedido sob condições estritas por parte dos financiadores. Era o "funding loan" parecidos com os do atual FMI.

A política de Rui Barbosa, o primeiro ministro da fazenda, agravou a situação. Ele autorizou a impressão desenfreada de papel-moeda, causando especulações e negociatas na compra de títulos e ações. Foi o famoso Encilhamento.

Isso causou o aumento do custo de vida. De 1888 a 1890, os gêneros de primeira necessidade aumentaram 62% e entre 1891 e 1894, 118%.

No Sudeste e no Sul, porém, as cidades cresciam lentamente. Beneficiadas pelas industrias que nasciam, e a entrada de capital estrangeiro, estas regiões testemunharam o enriquecimento de grupos que controlavam bancos e o comércio. No Rio de Janeiro e em São Paulo, emergiram grupos sociais, identificados com o progresso das cidades europeias.

Os bairros nobres se modernizavam nas cidades. Sobrados neoclássicos da época imperial, foram substituídos pelos palacetes e chalés, com jardins ao estilo europeu.

Em 24 de janeiro de 1890, Campos Salles ( ministro da justiça ) assinou um decreto que estabelecia a obrigatoriedade do casamento civil, a secularização dos cemitérios e a separação entre igreja e estado. Os religiosos manifestaram sua insatisfação. Em 26 de julho, o ministro afirmou que o não cumprimento da promulgação seria considerada crime. O casamento civil deveria ser realizado antes do religioso, e o padre que não observasse essa determinação poderia inclusive ser preso.

Essas medidas tentavam criar uma base de legitimidade ao governo. Baseados nos princípios liberais e positivistas, retiravam da igreja e passavam ao estado, responsabilidades e poderes antes monopolizados por ela.

Outro decreto de 7 de janeiro de 1890, criou o registro civil. Anteriormente, os registros eram feitos nas paróquias quando do batismo. Depois da medida só era válido o registro civil obrigatório em cartórios. Quanto aos cemitérios, deveriam ser administrados pelas autoridades municipais.

Na Bahia, o governo federal nomeou Manoel Vitorino para governar o estado, após reações contra a instalação da república. O deputado federal César Zama se destacou pelos protestos e a oposição dos políticos locais a essa determinação.

No ano seguinte, Manoel Vitorino pediu demissão e o general Hermes da Fonseca assumiu. Este último envolvido em nepotismo e empreguismo renunciou ao cargo. César Zama diria: "Na Bahia, como no Rio de Janeiro, a república foi obra de uma parte da guarnição".

No estado, o poder foi dividido entre a oligarquia tradicional. Com seus redutos eleitorais, a elite fundiária passou a controlar o governo. José Gonçalves, aliado do "barão de Jeremoabo" ( influente latifundiário ), governou o estado de forma intermitente. Ora aliado, ora adversário de Luís Viana, aristocrata eleito governador em 1896.

O controle do poder local era, porém, sempre instável, dificultando a implantação de um projeto político estabelecido pelas elites. Era o reflexo das dificuldades econômicas vividas que contrastavam com a do Sul e do Sudeste.

A economia do estado estava em decadência estrutural, com o cacau e o açúcar não alcançando receitas significativas. Em 1897, a Bahia representava apenas 5% da exportação nacional. Para agravar a situação, a crise cafeicultora de 1896, interrompeu a imigração dos sem-terra para o Sudeste. As secas agravavam o empobrecimento e a marginalização de grupos das comunidades agrícolas do interior.

A abolição da escravatura foi saudada por Antônio Conselheiro, porém a república o desgostou profundamente. Ele aprendera a respeitar e reverenciar o império e o imperador que seria o representante de Deus na terra e defensor da religião entre os homens. A laicidade, o reconhecimento do casamento civil, a separação entre a igreja e o estado, a nacionalização dos cemitérios e o reconhecimento dos direitos religiosos de protestantes e judeus, odiados pelo clero católico, magoaram-lhe profundamente.

Antes de se acomodar a república, a alta hierarquia católica combatera a separação entre igreja e estado.

As posição do pregador sertanejo colocava em evidência as mudanças realizadas pelo governo. A república não oferecia aos sertanejos, nem a população em geral, melhores condições de vida. Ao contrário, o acúmulo de obrigações e impostos aumentava o empobrecimento. Nos anos seguintes a mudança de governo, a população pobre viu suas condições de vida piorarem e as populações rurais culpavam a república pelos problemas.

Para Antônio Conselheiro as dificuldades eram causadas pela separação entre as coisas públicas e as coisas de Deus. A monarquia representava Deus na terra, a república era então, o governo do cão ( ou demônio ).

Na Bahia a renda das exportações caia sem parar. As elites aumentaram os impostos diretos ao povo, criando taxas e acumulando as existentes. Crescia a pressão sobre os municípios e esses pressionavam a população.

A autonomia municipal da Constituição de 1891, dava as elites o poder de explorar com mais tributos a população. para o historiador Marco Antônio Villa, a república passou a ser sinônimo de miséria, imposto, fome, e morte na mente da massa rural.

A receita baiana caiu de forma significativa com as taxas sobre as exportações, e a pressão fiscal sobre a população cresceu consideravelmente. Como a população rural praticava uma economia basicamente natural e escassamente monetária, a inflação era uma coisa inexplicável, e era considerado um fenômeno maligno.

Antônio Conselheiro iria se pronunciar contra a república em suas prédicas desde 1889. A perseguição contra ele aumentou quando o clero, por ordens superiores, cessaram a oposição ao novo regime, reconhecendo sua legitimidade.

Ele era inquirido, e pronunciava sobre o caráter da nova ordem, e sobre os novos impostos, falando sobre as coisas de Deus e das coisas de "César".

Nas feiras da região, eram cobradas para se vender e comprar. Certa vez, os fiscais cobraram cem réis de uma sertaneja para que pudesse expor uma esteira que não superaria o valor de 80 réis. Ao entardecer, o pregador denunciou a situação.

Este tipo de discurso era bem acolhido pela população cabocla. Suspeita-se que ao menos três batidas policiais foram enviadas contra o pregador, sem maiores resultados. As elites baianas compreendiam que resolver as dificuldades financeiras explorando o povo, causava antipatia ao novo regime.

No interior da Bahia, os editais de cobrança eram afixados em painéis, nas praças das aglomerações. Em 1893, em Bom Conselho, os conselheiristas queimaram as tábuas e os editais em uma fogueira. O mesmo ocorreu em outras localidades.

O ato rebelde simbolizava a insatisfação popular contra a nova ordem e os novos impostos. Os discursos do pregador parecem ter iniciado um movimento bem mais amplo do que se acredita. Em diversos municípios o pagamento das taxas foi interrompido. A pregação do conselheiro refletia a vontade do povo ( a isenção de impostos ), porém, não se tem noção da extensão geográfica desse movimento de desobediência civil.

Com a destruição dos editais, Antônio Conselheiro transgredia pela primeira vez a ordem civil. Mesmo se os conselheiristas não reconhecessem a nova ordem, cometeram um delito punível pela lei: destruir um bem público e incentivar a desobediência às autoridades constituídas. Consciente do ato , o líder abandonou Bom Conselho. O juiz de direito da comarca, Arlindo Leoni, requereu ao governador tropas para conter o agitador.

O governador baiano Rodrigues Lima expediu da cidade de Salvador, 35 praças armados sob o comando do tenente Virgílio de Almeida, para prenderem Antônio Conselheiro e desbaratar seu bando, e colocar fim a desobediência às imposições governamentais.

Em Masseté, se deu o encontro entre as tropas rebeldes e a polícia. Todos acreditavam em uma vitória rápida sobre um séquito de beatos, velhas, crianças e penitentes. Não haveria mais de 200 seguidores do pregador.

A história do primeiro confronto não possui muitas informações. O certo é que na noite de 26 de maio de 1893, o destacamento foi vencido pelos conselheiristas, estando estes armados de bacamartes, porretes, facões e armas de ocasião.

Ainda que a disposição bélica da tropa fosse pequena, já que era provavelmente formada por homens com soldo atrasado e arrolados a força, ela estava regularmente treinada e armada. A vitória não se deu apenas por fervor místico dos combatentes, pois não era comum beatos vencerem forças policiais.

Já assinalamos que após a formação do arraial de Belo Monte, Antônio Conselheiro formou a Guarda Católica, composta por seguidores bem armados. Ela foi a espinha dorsal da resistência conselheirista durante o prolongado cerco militar. É provável que ao menos o núcleo central da organização já estivesse constituída depois da prisão do conselheiro, certamente após 1886.

Quando a derrota foi noticiada em Salvador, o governador Rodrigues Lima solicitou ao presidente Floriano Peixoto, ajuda federal para combater os rebeldes.uma nova expedição de 80 soldados da guarnição de linha segui até Serrinha. Em uma reunião, as autoridades acharam mais prudente interromper o ataque. A decisão pode ter sido tomada baseada na insatisfação do povo do sertão com o novo estado das coisas.

Os conselheiristas venciam sua primeira batalha contra o governo "do Cão". O sertão abria-se, livre, imenso, diante do conselheiro e sua gente. podiam procurar um lugar para viver, com seu trabalho e sua orações. Para isso, se deslocaram tempos depois para uma área praticamente abandonada, a Fazenda Velha. No local havia o pequeno povoado de Canudos. Ali, o líder religioso fundou o arraial de Belo Monte. Um nome que registrava esperança e a alegria de viver dessa gente que conhecera, até então, apenas sofrimento e tristeza.
Este artigo tem como base bibliográfica a obra Belo Monte uma História da Guerra de Canudos, de José Rivair Macedo e Mário Maestri, da Editora Moderna que faz parte da Coleção Polêmica.

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