terça-feira, 2 de outubro de 2018

Série Histórica - Guerra de Canudos Parte 6: Casinhas de Barro

Em 1897, após a invasão pelas tropas governamentais, Alvim Martins Horcades, um dos integrantes da equipe de estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia que prestou atendimento médico aos feridos nos momentos finais do combate, descreveu as moradias dos caboclos:

"Eram todas as casas construídas muito toscamente,
sendo as paredes feitas com paus grossos amarrados sob varinhas
e cobertas de barro branco.
Os tetos de algumas eram de folhas de icó e palhas cobertas de barro,
também branco com pedrinhas roliças.
Tinham apenas uma sala, um quarto e um compartimentozinho
que servia de cozinha e sala de jantar ao mesmo tempo.
Algumas havia que tinham espessas paredes,
porém arranjadas na ocasião da investida
feita pela força ( exército ),
pois constavam elas de uma sólida estacada
cheia de grandes pedras
que impediam a perfuração por qualquer projétil."

O mobiliário era rústico e reduzia-se a três ou quatro peças. Pedaços de lenha serviam de móveis improvisados. Suportes de madeira substituíam cadeiras e mesas. Havia ainda redes de dormir, banquetinhas, cestos de palha trançada, recipientes de couro ou cabaças para guardar água. Os alimentos eram preparados em fogueiras feitas de graveto, a céu aberto, em que três ou quatro pedras faziam as vezes de fogão. Comia-se em pratos ou recipientes fabricados de barro, madeira ou lata.

Os homens vestiam calças de algodão listrado, camisas grosseiras, gibão, coletes e jaquetas de couro curtido, e sandálias de couro cru. As camisas, os camisões e os vestidos das mulheres eram fabricados no próprio local, com fibras conseguidas nas vizinhanças, mas que também podiam ser adquiridas no comércio local.
Os homens de confiança de Antônio Conselheiro, integrantes da Guarda Católica, vestiam calças e camisas de algodão azul, cobriam cabeça com um gorro também azul e calçavam alpargatas. Enfim, vivia-se no desconforto e na rusticidade, sob padrões de sobrevivência bem conhecidos dos pobres do sertão. havia porém uma importante diferença. Em Belo Monte não existia fome e reinavam a solidariedade e a autonomia populares.

No centro do arraial, localizavam-se as edificações mais importantes: a igreja velha e a igreja nova ( inacabada ), as casas comerciais e as moradias dos personagens mais importantes do lugar. Eram habitações maiores, melhor aparelhadas e distintas das demais por serem cobertas com telhas, superiores nas dimensões às outras habitações. Destacavam-se ainda o cemitério planejado por Antônio Conselheiro e a casa fortificada ( o Santuário ), dentro da qual o Conselheiro permanecia retirado boa parte do tempo.

Era grande a preocupação do líder religioso com a instrução dos moradores. Antônio Conselheiro, dando continuidade ao trabalho pedagógico iniciado décadas antes no Ceará, mandou construir escolas em Belo Monte, dirigindo-as pessoalmente. Mandou trazer um professor da cidade de Souré, chamado Moreira, que morreu pouco antes da deflagração da guerra. Para substituí-lo, foi contratada Maria Francisca de Vasconcelos, uma jovem de 22 anos, que estudara na Escola Normal de Salvador, proibida pela família de casar-se com um jovem trabalhador de origem humilde, fugira com ele, indo morar, inicialmente, em Souré, e depois, em Belo Monte.

Poucos e estreitíssimos becos entrelaçados separavam os casebres. A rua principal, situada no centro da comunidade, chamava-se Campo Alegre. Outros becos ou ruelas ( a dos Caboclos, da Caridade, do Cemitério, da Professora ) indicavam pontos significativos para os habitantes. Ao contrário, a rua dos Negros assinalava uma ocupação populacional étnica bem delineada no interior do reduto sertanejo.

O zoneamento urbano, o material com que era construída, tudo fazia com que a povoação quase se confundisse e se mimetizasse com o meio de onde se levantava. A distribuição não-simétrica das casas e a comunicação feita por meio dos pátios e caminhos irregulares chocavam-se com o urbanismo racionalista das cidades litorâneas que seguiam o modelo urbanístico europeu. Ao contrário, elas lembravam importantes centros urbanos do Sudão Ocidental, na África, onde as cidades eram muitas vezes formadas por vilas que se aglutinavam, metamorfoseando-se em bairros.

A configuração do espaço ocupado de Belo Monte certamente provocava um impacto visual nos espectadores acostumados com as aglomerações no estilo ocidental do litoral. Um deles, o frei João Evangelista do Monte Marciano, chegou a compará-la a um "acampamento de beduínos", registrando seu profundo preconceito com relação às populações e à cultura sertaneja.

Nos pontos comerciais e na feira ao ar livre realizada semanalmente, vendiam-se e compravam-se os gêneros básicos de consumo da região, os gêneros alimentícios ( queijo de cabra, goiabada, cebola, alho, rapadura, farinha, carne-seca ), utensílios e instrumentos domésticos ( cestas, ferramentas ) e até mesmo armas. A moeda utilizada no Império e na República circulava livremente em Belo Monte.

A quantidade de dinheiro jamais foi expressiva. As condições gerais de vida eram precárias e era baixo o nível de desenvolvimento da economia monetária na região. Comumente, os sertanejos realizavam seus intercâmbios pela troca simples e direta, sem utilizarem a moeda.

Com o tempo, Antônio Vila Nova, o mais importante comerciante conselheirista, criou um vale impresso amplamente aceito nas localidades vizinhas e que acabou substituindo o dinheiro nas trocas. também neste caso, o arraial de Belo Monte ofereceu alternativas para seus moradores, que se tornavam autônomos perante o sistema dominante e a sociedade de classes da época. É importante lembrar que o privilégio da emissão de moeda é um monopólio dos estados independentes.

Do mesmo modo, a vida econômica regia-se por princípios diferenciados dos tradicionais. No momento em que ingressavam na cidade os recém-chegados doavam "parte" de seus bens a uma caixa comum. Isso não quer dizer que a noção de propriedade fora abolida. Mantinha-se o direito de propriedade sobre a produção familiar, alguns bens, e determinados integrantes vinculados ao comércio acumularam riquezas.

A existência de um fundo comum garantia a manutenção da parcela da população que não tinha meios próprios para subsistir dignamente e financiava a estrutura administrativa rudimentar do arraial. Em vez de socialismo ou igualitarismo absoluto, incompatíveis com o próprio nível de desenvolvimento material e espiritual daquele grupo, é preferível pensar na existência de um comunitarismo fundado na ideia da solidariedade coletiva.

Nas imediações do povoado, praticava-se a caça e cultivavam-se gêneros alimentícios ( milho, feijão, batata, batata-doce, abóbora, melancia, melão, cana-de-açúcar ). Abundava nas proximidades do rio Vaza-Barris o umbuzeiro, cujo fruto era bastante apreciado por conter bastante líquido. Havia ainda mangabeiras e várias espécies de palmito e coqueiro, que serviam de "celeiro" para os habitantes.

O trabalho agrícola baseava-se na exploração comunitária do solo por meio das mutirões ( realizados quando da semeadura, na limpeza da roça, no plantio da colheita ). Essa forma de cooperação foi elemento fundamental durante a existência da comunidade. Ela permitiu que cada indivíduo participasse diretamente na manutenção da coletividade, garantindo condições mínimas de sobrevivência para todos.

Somado ao trabalho realizado no arraial, os moradores prestavam serviços nas imediações. Dando mostras de manter boa relação com pelo menos determinados fazendeiros, Antônio Conselheiro incentivava os integrantes de seu rebanho a venderem a força de trabalho nas propriedades rurais das vizinhanças em troco de pagamento diário. Parte dessa renda terminaria na caixa comum.

Os conselheiristas contavam com a entrega de bens por parte de admiradores e constantemente solicitavam a doação de mantimentos e de equipamentos ( este últimos empregados na construção da igreja nova ) aos comerciantes e fazendeiros abastados da região. Por motivos óbvios, os proprietários certamente contribuíam prontamente com o pedido.

A pecuária representou a principal atividade econômica do arraial. Além da criação de gado bovino e equino, Belo Monte possuiu grande rebanho de cabras e bodes, comerciando largamente os produtos deles derivados nas vilas e cidades próximas. As peles eram curtidas com o sal e o sumo da casca da planta chamada favela. Em seguida eram enviadas a Juazeiro, cidade próxima do rio São Francisco, para serem transportadas de trem até Salvador. Dali eram exportadas até mesmo para o exterior.

Na beira do rio Vaza-Barris, existiam quatro curtumes e pelo menos três casas comerciais negociavam exclusivamente com o couro, que se tornou a mercadoria mais valiosa nos intercâmbios econômicos realizados por negociantes como Joaquim Macambira, homem bem relacionado fora do povoado. Longe, pois, de representar a estagnação, o atraso e o isolamento, a comunidade de Belo Monte, integrava-se às condições do sertão, dando mostras de grande vitalidade e demonstrando amplas possibilidades de articulação com os demais povoados e aglomerações locais.
Este artigo tem como base bibliográfica a obra Belo Monte uma História da Guerra de Canudos, de José Rivair Macedo e Mário Maestri, da Editora Moderna que faz parte da Coleção Polêmica.

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