segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Série Histórica - Guerra de Canudos Parte 7: Vida Festiva

Canudos vista pela arte Naïf
A vida urbana organizou-se rapidamente. O consenso e a coesão garantidos pela adesão à pregação religiosa regiam as linhas gerais do comportamento da população. Ali não se bebia e não se jogava. Segundo Euclides da Cunha, certa vez o líder mandou destruir a machadadas os barris de um carregamento de aguardente chegado de Juazeiro, expulsando a seguir os tropeiros que haviam introduzido a mercadoria.Porém, temos referência à ingestão de bebidas alcoólicas no arraial.

A prostituição não era admitida. Entretanto, a vida sexual dos habitantes da aglomeração não era rígida. Como era e é normal entre as comunidades rurais brasileiras, o concubinato e as uniões livres eram tolerados e bastante difundidos.

Havia uma cadeia, conhecida como "poeira", cujo próprio nome indica que era pouco usada. Ela servia apenas para reprimir pequenas faltas. Quando ocorriam delitos e crimes mais graves, os responsáveis eram banidos da comunidade ou entregues às autoridades da comarca de Monte Santo. Como jamais se arrogou indevidamente poderes eclesiásticos, Antônio Conselheiro procedeu do mesmo modo em relação ao poder civil.

A vida cotidiana dos habitantes esteve profundamente associada ao sagrado.A comunidade era concebida como um espaço reservado aos eleitos de Deus. Uma terra em que corria um "rio de leite", com "barrancos de cuscuz de milho", isto é, um local de abundância e de felicidade.

O aspecto da Montanha de Piquaraça, a uns 100 quilômetros de Canudos, levou o missionário católico Apolônio de Todi, no final do Século XIX, a compará-la com o Calvário de Jerusalém, em que Jesus foi crucificado. Uma capela foi erigida nas proximidades e o local passou a ser chamado de Monte Santo. Como veremos, Monte Santo foi um dos principais pontos de apoio das expedições lançadas contra o arraial conselheirista.

De maneira similar, o nome Belo Monte não seria uma alusão ao Monte Tabor, onde, segundo a tradição popular cristã, Jesus iria retornar, antes do juízo final para juntar-se a seus seguidores fiéis e instaurar um reino de paz e prosperidade que duraria mil anos?

No interior de Belo Monte, os sertanejos expressavam de várias formas sua crença na intervenção das forças sobrenaturais. É crível que ao menos uma parte da comunidade vivesse aguardando ansiosamente o fim dos tempos, identificando em Antônio Conselheiro o profeta e o emissário direto da divindade. Viviam sob disciplina religiosa, acreditando que seriam punidos os que não cumprissem suas obrigações para com Deus.

Acreditava-se também, piamente, na intervenção sagrada por meio de milagres e prodígios realizados através de intermediários entre o Criador e os homens. A população atribuía ao Conselheiro esse papel de mediador. Ele era respeitado como líder, venerado como profeta, admirado e temido como milagreiro e taumaturgo.

Corriam, de boca em boca, narrativas relacionadas ao modo como Antônio Conselheiro realizara feitos miraculosos ou amaldiçoara os inimigos. Algumas foram incorporadas ao folclore nordestino, sendo transmitidas oralmente até os dias atuais.

Conta-se que Antônio Conselheiro, certa vez, diante de uma procissão, realizou o milagre de fazer verter água das paredes de uma igreja , ou que , ao tocar com seu cajado na ponta de uma madeira pesada, que seria empregada na construção da igreja, ela ficara leve tal qual uma pena. Houve até quem o considera-se santo idolatrando-o como se fosse um ente divino. Entretanto, segundo parece, Antônio Maciel desaprovava esses extremismos religiosos e místicos. Preferia ser chamado singelamente de "peregrino".

A religião cabocla, resultante de profundo sincretismo, congregava em si elementos do catolicismo popular português com crenças e rituais  indígenas e de origem africana. A exteriorização  da crença mesclava aspectos do culto católico ( preces, romarias e penitências ) com ritos, cerimônias talismãs e amuletos pertencentes ao universo mágico-religioso das tradições indígenas e africanas.

Uma das tradições indígenas verificadas em Belo Monte ocorria no mês de agosto, quando os descendentes de indígenas bebiam um licor feito de jurema ( planta nativa fortificante e de propriedades alucinógenas ), fumavam e bebiam cachaça, numa mostra da persistência dos rituais de cunho pagão. Essa tradição sugere que a interdição de bebidas alcoólicas não seria tão restrita.

Ao cair da tarde, todos os dias, as badaladas do sino da igreja anunciavam as rezas coletivas. Nestes momentos, era comum a separação da multidão em dois grupos: o dos homens e o das mulheres. Mesmo durante o período de conflito armado, essa atividade continuou a ser realizada habitualmente. Até o momento em que foi morto alvejado por balas do exército, Timotinho cumpria pontualmente a sua função de sineiro, chamando o povo para procissões e orações.

Após a destruição de Belo Monte, em meio às ruínas e aos corpos carbonizados dos cadáveres, soldados, jornalistas e espectadores puderam constatar o quanto o sentimento religioso orientara as ações dos moradores, encontrando nos escombros das moradias destroçadas variados tipos de rosários, crucifixos, imagens, amarrotadas de santos , figas, cartas santas, orações e benditos em caderninhos costurados e escritos com a caligrafia rudimentar dos semiletrados.

Mesmo os adversários declarados de Antônio Conselheiro não denunciaram qualquer forma de desvio da religião católica no interior da cidade. O frade italiano João Evangelista de Monte Marciano, destacado pelo arcebispo da Bahia, em 1895, para realizar uma missão espiritual naquele lugar, apesar de demonstrar grande antipatia pelos caboclos e por seu líder, atestou a retidão espiritual do povoado. O único erro apontado dizia respeito ao rigor excessivo na conduta moral dos fiéis e ao fato de que o velho peregrino substituía os representantes diretos da igreja.

O "beija" a que se referiu com desdém o emissário do arcebispo era uma cerimônia particular. Depois das rezas, das ladainhas ou dos terços e antes da pregação, Antônio Beatinho, um dos colaboradores diretos de Conselheiro, tomava um crucifixo nas mãos, e depois, pequenas estatuetas da virgem, de Cristo e dos santos, beijando com êxtase cada uma das imagens, sendo imitado pela multidão que, em fila, reverenciava os ícones sagrados.

Não se pense que a atmosfera de misticismo inibisse o espírito alegre e festivo do sertanejo. As pregações religiosas diárias eram momentos de congregação e socialização geral. Nem todos os habitantes eram ascetas e o próprio Conselheiro jamais obrigou alguém a frequentar as cerimônias. As mulheres em maior número, e os homens sinceramente tocados pela piedade compareciam frequentemente às rezas. Quanto aos demais, bastava viverem honestamente, cumprindo com seus deveres e obrigações, sem fazer mal ao próximo.

Em ocasiões festivas, o sacro misturava-se ao profano. O povoado era todo embandeirado, os sinos rebimbavam, realizavam-se disputas de tiro ao alvo. Nas vaquejadas periódicas, os cavaleiros e os vaqueiros demostravam habilidade e destreza no trato com as manadas no laço e na montaria.

Nas feiras e nos pontos de comércio, enquanto os negociantes e o povo comum vendiam e trocavam seus produtos, os cantadores improvisavam versinhos e cantigas, em que o líder máximo era geralmente enaltecido, e anunciava-se a derrota próxima dos adversários. mas sobrava também inspiração para os sentimentos de afeição.

Nas formas de sociabilidade permitidas e difundidas entre os caboclos, as festas em homenagem aos santos, e especialmente as festas natalinas, eram integradas por danças, música e muita comida. Em 1893, depois da conclusão dos trabalhos de restauração da igreja velha, a inauguração foi festejada com música e estouro de fogos de artifício. A queima de fogos nas festas de São João era das maiores da região. Mesmo em momentos menos solenes, por ocasião de casamentos e batizados, por exemplo, comemorava-se com tiros de espingarda, fogos, vivas e banquetes. Nas proximidades, abundavam o salitre e o enxofre necessários para a fabricação de pólvora.

Nada indicava a predominância de tristeza ou da circunspeção excessiva, parecendo infundadas as acusações de fanatismo dirigidas aos conselheiristas. pelo contrário, os dados gerais relativos aos costumes vigentes demonstravam de forma clara o quanto toda a comunidade participava do modo tradicional de vida do mundo sertanejo. A diferença fundamental era de que tal vivência ocorria de forma autônoma e independente das instituições representantes do poder. Belo Monte constituía um estado dentro do estado. Um estado rústico, informal, de fronteiras e cidadania indefinidas, mas capital conhecida: Belo Monte.

A figura carismática de Antônio Conselheiro sobressaía não apenas dentro ou nas imediações do arraial. Sua influência era reconhecida em toda a Bahia e mesmo em outros estados do Nordeste. A fama chegava a tal ponto que retratos seus eram expostos nas paredes de muitas casas em Salvador. A posição de liderança de número tão expressivo de seguidores garantiu-lhe uma autoridade reconhecida por fazendeiros e por políticos baianos influentes.

No arraial de Belo Monte, o velho peregrino, além de líder religioso, era o protetor pessoal de toda a coletividade. Antes mesmo da fundação do arraial, muitos pediam para que o homem santo servisse de padrinho para seus filhos, honrando-os com sua proteção.

Entre 1880 e 1892, somente na cidade de Itapicuru de Cima, Conselheiro batizou 92 crianças, indicando com madrinha a virgem Maria. Não parece absurdo supor que no arraial tal tipo de prática existisse. Neste ponto, o conselheiro assumia a posição de pai e protetor, costumeiramente desempenhada pelos coronéis. Essas relações e alianças interpessoais  desempenharam, certamente, um importante papel quando da resistência armada.

Conselheiro possuía enorme prestígio; por isso mesmo despertava a admiração, mas também a inimizade. Em pouco tempo, o arraial de Belo Monte tornou-se referencial para os pobres de todo o sertão. Tornou-se , ao mesmo tempo, uma ameaça real para os representantes do poder regional.

Com o aumento gradativo das pressões, o conflito violento parecia inevitável. Disso, os próprios conselheiristas pareciam ter ciência.
Este artigo tem como base bibliográfica a obra Belo Monte uma História da Guerra de Canudos, de José Rivair Macedo e Mário Maestri, da Editora Moderna que faz parte da Coleção Polêmica.

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